terça-feira, 10 de setembro de 2013

BONDE



Solteiro, comerciário, ele se desespera na fila das seis da tarde. Na meia hora de vida roubada por esse bonde, José podia ter feito grandes coisas: beber rum da Jamaica, beijar Mercedes, saquear uma ilha. Pula de um pé no outro, impaciente de assumir o seu posto no mundo, assim que o bonde chegue - o navio fundeia nos verdes olhos.
Não dói o calo no pé esquerdo, nem pesa o guarda-chuva no braço, a um flibusteiro que bebe rum em crânio humano daria o Capitão Kid desconto de 3% para vendas a vista? Desafia os vagalhões na sua nau Catarineta, eis que um pirata lhe bateu no braço e o herói saltou em terra.
- Seu moço, para onde vai esse bonde?
- Por cem milhões de percevejos fedorentos!
Bom rapaz, não praguejou feito um excomungado lobo-do-mar, e deu a rota de sua fragata. Um moço - vinte anos, puxa! - com a idade do homem de negócios, o guarda-chuva é negra bandeira de tíbias cruzadas. Nesse bonde que ninguém não viu ele quer fugir para o longe, abandonando a donzela de cigarro na boca, triste no cais. A seu lado, o barbudo Zequinha Perna-de-Pau e a pálida filha do Vice-Rei da Ilha das Tartarugas boiam  náufragos como ele, atirados à praia pela maré. O velho de olhos azuis de contramestre, um pacote de bananas no braço, sorri para ele. Na testa lateja uma espinha, até isso!
Morte aos barões cornudos! Desfralda no crepúsculo o seu grito de guerra. Todo velhote é um canhão de museu, sente gana de afogar o Corsário Mão-de-Gancho que não o deixa se fazer ao mar. Corpo de cavalo-marinho, uma dama igual àquela, triste no cais, sopra inquietos ventos nas velas rotas de seu bergantim. Arrasta as correntes da âncora que enleia a partida: piedade filial, temor a Deus, devoção à pátria.
Em vão vogava em maré de barataria, o bonde que chega abriu a goela de baleia, onde Jonas esperava por ele com um barril de rum.
A consciência de sua idade lhe dói no calo do pé, na espinha da testa, nas vozes de sereias que cantam só para ele. A maruja iça a bujarrona e o velho tropeça no estribo, derrubando o pacote. Sem orgulho ou dignidade, o pirata recolheu as bananas amassadas e subiu, perdido o último banco da popa.
O bonde joga no mar grosso, dele não se pode ver o céu. O contramestre retira uma banana do pacote, é a segunda vez que oferece. De pé, no cesto da gávea, grita o Capitão - "Terra!", os telhados de Ítaca tremulando ao longe
.

Autor: Dalton Trevisan

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